9ª EDIÇÃO

IMPRENSA

Mulheres do Cacau: projeto mostra força feminina no campo

Entre os objetivos da proposta estão ampliar a produtividade das lavouras cacaueiras conduzidas por mulheres, fortalecer a organização social e reduzir as desigualdades de gênero no campo

O ano era 1981. Nos Estados Unidos, a Nasa lançou a primeira missão de um ônibus espacial, o Columbia, que se desintegrou na reentrada da atmosfera e matou sete astronautas. No Vaticano, o Papa João Paulo II foi baleado e, apesar da gravidade das lesões, sobreviveu. No Brasil, a seca se agravou no Nordeste, deixando um rastro de lavouras perdidas, desolação e mortes, principalmente de crianças sofrendo de desnutrição. No Espírito Santo, Eurico Resende estava na cadeira do Executivo, o último governo militar a ocupar o Palácio Anchieta antes da chegada da Nova República.

Em São Rafael, no interior de Linhares, alheia a todas as grandes tragédias e mudanças que ocorriam mundo afora, Matilde, então com nove anos, experimentou pela primeira vez a fruta que transformaria sua própria vida. Um vizinho tinha dois pés de cacau plantados no quintal e ofereceu-lhe algumas sementinhas polpudas. Logo, ela se apaixonou pela doçura e sabor. Contou ao pai sua experiência, que tratou logo de plantar dois pés de cacau em seu próprio quintal.

Quanto se casou, Matilde Garabelli Venturin decidiu levar consigo um pouco da doçura da infância e, à revelia do que queria o sogro, plantou dois cacaueiros perto da nascente da propriedade da família do marido. As plantas prosperaram e o sogro, então convencido da produtividade e prevendo uma nova possibilidade de renda, resolveu plantar outros 500 pés de cacau.

“Produziu, mas pouco. Nós mesmos fazíamos as mudas, quer dizer, não tinha muita técnica. Além disso, o local era muito íngreme, difícil de colher, então a plantação foi abandonada” diz, contando que há mais ou menos uns quatro anos, ela e o marido se animaram e plantaram novamente entre 300 e 500 pés da fruta. Matilde, no entanto, conseguiu um trabalho fixo em Linhares e a plantação não prosperou.

Dizem os antigos que o bebê, quando no ventre, absorve tudo o que a mãe sente. E talvez a filha de Matilde também tenha se apaixonado pelo cacau ali mesmo, no útero. Fato é que foi ela quem se inscreveu em um programa lançado, há três anos, pela Prefeitura de Linhares. “Ficamos muito animadas. Meu marido fez um curso no Senar, meio a contragosto, mas fez”.

A lavoura, no entanto, só prosperou a partir de 2022, com o projeto Mulheres do Cacau. Foi quando Matilde deixou o emprego e decidiu voltar para a sua grande paixão, o cacau. “Na primeira semana já podei toda a plantação. Quem coloca o alicate na minha lavoura para poda sou eu, mais ninguém. Tem que entender a técnica se não, ao invés de ajudar a planta a se desenvolver, só atrapalha. Hoje, tenho 1.100 pés com três anos, mais 600 com um ano e meio. E estou me preparando para plantar mais 1.200 mudas. Agora, quero trabalhar para ter uma boa estrutura de produção de amêndoas de qualidade para produção de chocolates finos. O programa Mulheres do Cacau foi fundamental para realizar meu sonho”. 

É o cacau se expandindo pelas mãos das produtoras rurais. Para dar ideia da importância da cultura, ela foi responsável pela emancipação política de Linhares na década de 1940. O município deixou de ser distrito de Colatina devido ao crescimento econômico impulsionado pela produção da fruta. No início dos anos 2000, a temida vassoura de bruxa chegou ao Estado e dizimou as lavouras, mas o cacau não só ressurgiu, como vem se expandindo por todo Estado, cultivado a pleno sol.

Vocação feminina
 Veterinária de profissão e incentivadora da força das mulheres por vocação, Alessandra Maria da Silva é extensionista rural do Incaper e ainda se pergunta, divertida “como veterinária, como fui me meter nessa história toda de Mulheres do Cacau”.

A resposta veio da sua sensibilidade. “Trabalhando como extensionista rural percebi muita desigualdade entre mulheres e homens no campo. Toda vez que eu marcava um curso, só os homens participavam, até em cursos sobre temas considerados tipicamente femininos, como derivados do leite. Eu questionava e eles respondiam ‘porque as mulheres ficaram em casa cuidando de tudo’. Então, eu ficava observando que as mulheres estavam sendo afastadas do conhecimento por seus afazeres domésticos. Mas eu não sabia o que fazer. Só tinha em mente que era sim, minha responsabilidade, levar o conhecimento até elas”, diz Alessandra

Após fazer um doutorado focado em questões de gênero, voltou à extensão rural e decidiu trabalhar só com as mulheres. Alessandra estreou com o pé direito. Ela foi convidada para trabalhar na elaboração do projeto “Elas no Campo e na Pesca, Empreendedorismo, Liderança e Economia”, do Governo do Estado. O projeto começou a orientar políticas públicas com linhas de crédito exclusivas para as mulheres e Alessandra resolveu fazer um diagnóstico participativo em Linhares, para saber o que as mulheres do campo queriam.

Entre outras demandas surgiu o desejo de fazer o curso de tratorista e de trabalhar na cacauicultura. Nascia assim o projeto Mulheres do Cacau. “O diagnóstico mostrou que elas queriam a cacauicultora, especificamente a Maria Loss, que já tinha me pedido um trabalho para que as mulheres tivessem acesso tecnológico na produção de amêndoas de qualidade. Ela apresentou essa proposta no diagnóstico e várias mulheres fizeram coro com ela. Daí nasceu o Mulheres do Cacau”.

O grupo começou com menos de 40 integrantes, hoje são mais de 70 espalhadas pelos municípios de Linhares, Rio Bananal, Colatina, Santa Teresa e São Roque do Canaã. “Elas começaram a conviver, compartilhar os problemas que tinham, as vivências ruins e também as coisas boas. E isso foi unindo as mulheres e elas foram incentivadas a continuarem autônomas, usamos vários métodos de empoderamento feminino. O resultado foi que resolveram criar uma associação e tomaram a decisão de que só poderia participar quem fizesse o curso de associativismo. As mulheres fazem com muito zelo. Temos agora quatro associações, considerando a de Colatina que está se formando agora. E incentivamos que outros municípios formem também associações e se vinculem a uma central”, conta Alessandra.

Maria Loss Gambert Schiavon, de 63 anos, planta cacau há dez no sítio Pedra de Santa Rosa, em Japira, zona rural de Linhares. Começou com 30 pés e, hoje, já tem quase 3.000 cacaueiros, metade deles, de qualidade. Maria faz mel de cacau, amêndoas caramelizadas e vende boa parte da produção para chocolaterias. A produtora foi uma grande defensora do projeto mesmo antes dele existir. Assim como Alessandra, ela percebia a ausência das trabalhadoras rurais nos eventos do agro e se questionava sobre esse anonimato.

“O cacau exige os cuidados das mãos femininas. Ele pede delicadeza, capricho e zelo. Se é cuidado com esse carinho, ele devolve às mulheres equilíbrio financeiro e a autoestima. Hoje vejo mulheres com autonomia. Antes, tinha mulheres acuadas, caladinhas igual a um carneirinho, hoje são fortes. As mulheres com filhos podem cuidar do cacau ao mesmo tempo que dão atenção às crianças e ainda têm independência financeira. O programa foi uma libertação”, conta.

Maria Loss conta algumas histórias, difíceis de conceber que ainda aconteçam em pleno século 21. Mas acontecem o tempo todo. “Depois que fizemos o grupo, algumas mulheres quiseram sair. Mas não por vontade própria. Alguns maridos ameaçaram se separar porque as mulheres estavam se sentindo mais livres, mais independentes. Mais donas de si. Tivemos casos também de mulheres com depressão que conseguiram melhorar. No grupo, uma mulher dava as mãos para a outra, nos unimos, ficamos fortes. Fomos trabalhar uma na lavoura da outra, uma ajudando a outra. Não foi simples, mas é uma história de união feminina. Hoje, estou muito feliz e entusiasmada ao ver a independência delas”.

Agora, somos nós!
 “Antes, eram eles. Agora, somos nós”. A frase é de Ana Mendonça da Silva, (52 anos), moradora de Santo Antônio do Canaã, em Santa Teresa. Participante do Mulheres do Cacau, Ana tem um hectare plantado e uma colheita média de 36 sacas anuais. “Somos em três na propriedade, eu, meu marido e meu cunhado. Eram eles que trabalhavam no início. Quando começou a produzir, eu ajudava na colheita e a retirar as sementes para poder fermentar. Só passei a ir para a roça e fazer de tudo há uns três ou quatro anos, depois que entrei no projeto. Vinham dando assistência todo mês”.

Ela conta que aprendeu a ter mais independência e não só trabalhar sem direito a tomar decisões. “A  Ana de hoje é mais proativa. Sempre morei na roça desde que me casei, há 32 anos. Ajudava, mas não tinha voz dentro de tudo que se fazia. Hoje, a Ana tem voz e vez, tudo isso mudou. No início trabalhávamos com café e minha participação era até menor porque eu cuidava da minha sogra. Depois que ela faleceu, continuei, mas sem tanta expressão como tenho hoje. Mas não tive problemas com meu marido, que é muito parceiro e me deu apoio e força para eu entrar no projeto”, conta.

Ana também se lembra de que nem todas que iniciaram no projeto, permaneceram. Nem sempre por escolha própria. “Algumas mulheres desistiram, porque não fazia sentido ficar no projeto se elas não podiam tocar na lavoura. Muitas que iniciaram junto comigo ficaram pelo caminho porque viram que não conseguiriam dar continuidade, já que os maridos não deixavam as mulheres tomarem frente e fazer poda, por exemplo. Com isso acabaram desistindo, uma pena”.

Por todas as Anas, Marias, Gorettes…

Felizmente, esse não foi o caso de uma outra Ana, que decidiu ficar e lutar contra abusos e violência. Neta e filha de produtores rurais, Ana Paula dos Anjos Ramos mora na Fazenda Horizonte, em Bananal do Sul, zona rural de Linhares. Sempre trabalhou com cacau, pois nasceu e cresceu no meio das plantações e conhece a planta de tempos anteriores ao fantasma da vassoura de bruxa. Muita coisa mudou, novas técnicas surgiram e o horizonte se mostrou mais amplo e esperançoso.

 “O projeto Mulheres do Cacau é muito especial pra mim, pois eu o conheci em um momento muito difícil da minha vida. Tive um casamento recheado de violência. Em 2017, praticamente fugi de casa, em Guriri, São Mateus, e voltei para a casa dos meus pais, na roça. Cheguei com meu filho e um histórico longo de abusos no meu casamento de 17 anos. Fui para a lavoura de cacau da família, mas estava tudo largado. Eu, um irmão e uma irmã, além do meu cunhado, começamos a cuidar, limpar. Foi quando um anjo me convidou para participar de um dia de campo em 2022, e eu nem sabia que existia o Mulheres do Cacau. Era o direcionamento que eu precisava”.

Ana Paula começou, então, a fazer o curso, participar de novos dias de campo e hoje cuida, ao lado da família, de 2.500 pés de cacau, com a intenção de ampliar a plantação. “Aprendi muito com essas mulheres. Hoje eu sei balizar uma área para plantar o cacau, fazer a poda de condução, sei o ponto de maturação ideal para uma amêndoa de qualidade, como selecionar os frutos, as etapas de fermentação, a secagem e a qualificação das amêndoas. A Ana Paula de antes era uma pessoa que dependia totalmente do marido, financeira e emocionalmente, que não sabia a força que tinha dentro dela. A Ana Paula de hoje é uma mulher forte, guerreira que sabe que, por meio do conhecimento e do trabalho, pode chegar onde quiser”.

As histórias de produtoras que superaram obstáculos imensos e encontraram no Mulheres do Cacau não apenas uma fonte de renda, mas um caminho para a cidadania, independência e força se repete em muitas lavouras. Como no caso de Maria Goretti Dalmaso Borghardt (56 anos), moradora de Córrego da Lage, Colatina, que foi professora por 30 anos e, após a morte do pai, precisou tomar conta da lavoura. “Esse projeto veio na hora certa, porque plantamos o cacau sem ter nenhuma experiência com o cultivo. Aprendi a coletar o solo para fazer análise, a fazer as podas corretamente. Agora sei fazer a colheita dos frutos e observar as pragas que prejudicam as plantas”.

 Mais um elo na forte corrente
Além de todo empoderamento feminino promovido pelo projeto, algumas mulheres do grupo estão alçando voos ainda mais altos.  A Duila Angela Turetta Rosa, da comunidade Panorama 10, em Rio Bananal, é uma delas. Ela e a família trabalham com agricultura familiar e, há cerca de dez anos, plantam cacau. O desejo de ter uma fábrica de chocolate sempre esteve nos planos mas, como ela mesmo diz, “a gente não fazia ideia nem por onde começar”.

A resposta para a pergunta veio quando Duila foi convidada para participar do Mulheres do Cacau. “Conversando em família, discutimos uma forma de buscar uma nova renda com o que a gente já tinha, e a única coisa que a gente pensava era em fabricar nosso chocolate, com o nosso cacau. E no projeto vimos a esperança de colocar em prática o nosso sonho, a nossa fábrica”, explica a produtora.

Mesmo sem ter feito o curso de culinária do cacau, já que não havia uma cozinha com ar-condicionado, item obrigatório para trabalhar a iguaria em um local tão quente, começaram a tirar o sonho do papel. A família construiu dois cômodos e comprou os principais equipamentos para fabricação. Um investimento que já passou dos R$ 60 mil.

Enquanto isso, Duila e a filha Maihanmy Rosa, que trabalha fora, mas nas horas vagas ajuda como pode, estão fazendo testes para desenvolver o próprio chocolate que, aliás, já tem até nome Cacau Maya. “Se não fosse esse projeto jamais teríamos começado nossa fábrica. Estou bastante otimista com a possibilidade de agregar valor ao cacau que nós mesmos produzimos e beneficiamos. O projeto foi e continua sendo uma benção. Com ele aprendemos a cuidar da maneira certa desde o plantio até o beneficiamento do cacau. Estamos muito felizes”.

Para resolver o problema de algumas mulheres que querem ter seu próprio chocolate, mas não querem investir em máquinas e equipamentos, a Fabiani Salomão Reinholz Macedo, que há alguns anos tem uma fábrica, teve a ideia de beneficiar as amêndoas das colegas. “Elas colhem o cacau e me entregam, eu produzo o chocolate e devolvo a iguaria para elas. Faço por um preço que eu não faria para nenhuma pessoa que não fizesse parte do Mulheres do Cacau. E elas vendem então o produto beneficiado, com a marca delas”, pontua Fabiani.

Mulheres do Cacau, mulheres vencedoras
A agente de desenvolvimento do Banco do Nordeste (BNB), em Linhares, Izabel Lopes, conta que a cacauicultura é uma atividade tão relevante para a economia do Espírito Santo que foi escolhida para ser trabalhada pelo Programa de Desenvolvimento Territorial do Banco do Nordeste (Prodeter) em municípios como Linhares, Rio Bananal, entre outros. O objetivo da instituição e de entidades parceiras é incentivar aqueles que produzem cacau com a oferta de financiamentos e o compartilhamento de conhecimentos sobre a cultura.

Além disso, este ano o projeto Mulheres do Cacau Tecnologia, Autonomia, e Empoderamento Feminino, desenvolvido e inscrito pela Alessandra, no edital do Fundo de Desenvolvimento Econômico, Científico, Tecnológico e de Inovação (Fundeci), do BNB, ficou em primeiro lugar. Por meio do edital, o grupo recebeu R$ 450 mil, recurso que dará suporte à nova fase do projeto e permitirá o acesso às tecnologias sustentáveis de produção, beneficiamento e processamento de amêndoas de cacau de qualidade e à assistência técnica e extensão rural para agricultoras familiares.

Entre os objetivos da proposta estão ampliar a produtividade das lavouras cacaueiras conduzidas por mulheres, fortalecer a organização social e reduzir as desigualdades de gênero no campo. O projeto está sendo desenvolvido pela Fundação de Desenvolvimento Agropecuário do Espírito Santo e executado pelo Incaper em Linhares, Rio Bananal e Colatina.

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